PERFIL

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A poesia é liberta, não tem senhores; é sozinha, ao mesmo tempo multidão. Seu canal é o poeta, por onde passa, arrastando veias, fígado, mãos, olhos, coração.

SEM SABER DO POETA - POESIA - 1993

PAVILHÃO 9

Carnes vivas
carnes mortas
carnes de sangue negro
que gritam
que gemem
que pedem
que falam com as paredes.

Carnes vivas
carnes mortas
carnes de forte cheiro
que enlouquecem
que perdem o nome
que fingem perder o medo.

Carnes vivas
carnes mortas
portas dos buracos negros
que apodrecem
que viram lanches
onde urubus lambem os dedos.


O VELHO DA PRAÇA

Na praça
jogando a solidão ao tempo
o velho encurvado silencia
enfrenta sua pele fria
e observa os pés calejados.

Cansado
as pernas já não guiam
e as mãos trêmulas adormecem
esquecem
e ferem o seu coração.


PRECE

Minha/nossa Terra
que não erra
e não espera
a nossa dança.
Espera a minha vela
a luz
que vem daquela
promessa de uma criança.


MIGRAÇÃO I

Minhas roupas manchadas
meu único par de sandálias
um espelho no bolso
um colar desgastado
e uma sacola vermelha
larga
onde guardava minhas lembranças.

Era uma tarde de dezembro
e eu nem sabia do próximo ano
do próximo telhado
do próximo que viria ao meu encontro.

Saí sem olhar para trás...


MIGRAÇÃO II

Segui estrada.
Um dia inteiro de silêncio.

Parei na beira de um riacho.
Tomei meu primeiro banho fora de casa.

Era um rio de pedras,
de águas transparentes,
onde mergulhei meu corpo cansado,
e iniciei a lavar minhas mágoas.


MIGRAÇÃO III

De concreto só a praça,
os pneus dos carros
e mais adiante o caminho do mar.

Meia dúzia de sonhos acordados,
meia noite de sonhos adormecidos
e eu querendo encontrar.


CONGESTIONADO

Por Deus
e por todos os santos,
não me faças permanecer
sob o domínio do teu olhar.

Tenho o universo congestionado,
debilitado
de tanto verso estacionar.


LIMITES VAZADOS

Querias saber do amor,
do meu amor,
do que restou,
do que passou,
do que ficou,
do que existe dentro de mim!

Digo a você que tenho amor
por meu amor,
por teu amor,
pelo amor do teu amor
e por toda criatura indefesa!


POESIA DE PAPEL

No que você lia a poesia
eu fantasiava
por dentro via
e já tatuava você em mim.

No que você falava poesia
eu enlouquecia
e duvidava
que iria ter você afim.

No que você guardava a poesia
eu entristecia
anoitecia
e nem ao menos iria fugir do fim.

No que eu lembrava a poesia
lágrimas colhia
chovia
e nem ao menos eu tinha jardim.


PERCURSO

Não sei...
Pareço uma formiga
sempre arrastando uma folha amarga
disposto a doar meus braços
o meu cansaço
em nome do esquecimento
da vida
da solidão!

Não sei...
Pareço coisa tão louca
nem mesmo céu
nem mesmo boca
nem mesmo inverno ou verão!

Não sei...
São tantos credos em chama
são tantas veias, dramas
que pulsam, pulsam
e NÃO!!!


Vasculho os quatro cantos da sala,
os travesseiros da alma, imenso vazio.
Procuro e o coração logo cala,
já é madrugada, deságua meu rio.


POEMA DITO EM SONHO

O artista que eu conheço tem mistérios
que eu desconheço...
Quando dorme está em meio a sonhos,
quando sonha traz algo na mão.

O artista que eu conheço levanta-se na madrugada
e vai decifrar um novo texto,
uma nova palavra,
uma nova intenção.

O artista que eu conheço é o começo por opção.
E por mais que tudo fique ao avesso, parece ser seu
o roteiro,
sua direção.

O artista que eu conheço é igual a todos esses
que ousam buscar o sim
como forma de expressão.

ADIANTE DO TEMPO

E se eu voltasse o tempo?
E se eu enfrentasse os teus olhos?
Devolverias teu lado manso?
Habitarias no meu universo?

E se eu voltasse o tempo?
E se eu ligasse o seu número?
Atenderias dizendo o meu nome?
Desligarias dizendo “te quero”?

E se eu voltasse o tempo?


AMOR SEM SER

Além do teu corpo
nada mais.
Não se sabe do teu nome.
Não se ouve a tua voz.
Não sabes de mim.

Apareces no início da noite
e logo foges.
És um decifrável rosto
que não esconde nem mesmo o gosto,
o faz-de-conta,
o fim que aponta
e logo volta ao começo.

Não te quero como entendes.
Tens todos os corpos,
todos opostos
e não me dominas por inteiro.
Esfrio quando te vejo
esquento quando te tenho.

És sempre o lado esquerdo,
os lábios sem beijo
e a boca sem palavras.
Ah! mas não há palavras que te encontre!
Foges em desespero
e logo apareces nos meus sonhos.
Sonho do que não existe,
do que só me arrasta!

E é por isso que não te amo,
e só por isso não te abraço.


Consumo horas em pensamentos tolos...
Pareço estar mais sozinho a cada momento que passa.
Até mesmo as palavras me fogem, tomam outra rua,
buscam outra lógica,
caminham em direção contraria ao que diz minha boca.
Tenho a saliva amarga,
a garganta travada,
a emoção pálida.
Estando assim, não acredito em quase nada.


SEM TER FIM

E assim, pois que não a morte
E assim, pois não vou ver
E assim, quem diria o como
E assim, pois que não querer.

E assim, já no início da noite
E assim, como frágil poder
E assim, bem que não me açoite
E assim, sempre assim por dizer.

E assim, quem sabe, diria o quando
E assim, quem sabe, teria porquê
E assim, bem assim, indo ao longe
E assim, sem ter fim, você


OLHO MECÂNICO

Ou são teus olhos que tanto dizem
ou sou eu que tanto chamo.

Tramo uma forma de encontro
e quando chegas acabo o plano.

Ficamos endereçando o quando
e nunca vamos a outro ponto.


SENDO EXATO

Se for preciso mudarei o rumo
serei bem prático
atém terei estratégias
onde você entrará no prumo.

Se for preciso criarei uma regra
terei compasso
usarei uma régua
onde o desenho será outro mundo.


CORTINAS

Perde sentido a poesia
quando a palavra que havia
já não é tradução.

Perde sentido a magia
quando a espera, o dia
ficou além da ilusão.

E tudo se torna água
se vai em forma de mágoa
pulsando em ritmo de dor.

Foge assim um tipo de calma
partido, sem fim, inverso da alma
numa escura cortina do amor.


TRECHO DE UMA CARTA

Minha vida caminha.
Alguns tropeços leves,
algumas topadas,
mas um fôlego vindo de uma fonte
geradora.
É um vazio que se apresenta,
é um transbordar que se supera,
é um recomeço constante.
A vontade de acertar é grande,
embora eu saiba o ritmo que isso requer.
Na verdade há um ritmo melódico
que me acompanha,
mesmo quando não sei de mim.


MÃOS À POESIA

Para que tenham utilidade,
banho minhas mãos em águas transparentes,
exponho-as ao sol
e ofereço minha mente para que a essência flua do meu corpo.


ESSÊNCIA

Na platéia do meu circo há criaturas do povo,
com tênis, camiseta e um pouco de inocência.
Não platéia do meu circo há um menino que sonha,
um jovem que não sonha
e um velho que apenas olha.


DE VOLTA PARA CASA


Hoje, quando a vejo,
acende-se uma lareira no fundo da casa,
balança-se uma rede no fundo dos olhos
e eu, tão distante, pareço de volta.

E quanto mais distancio, mais aproximo!
E quanto mais silencio, mais eu grito!

Pois que todos os filhos serão sempre guias!
Pois que todas as mães serão sempre filhas!


PERGUNTA DE AMIGO

Onde foi mesmo que nos conhecemos?
Que horas marcava o teu relógio?
Havia memória nos teus olhos?
Ou será que estávamos no espelho?

Onde foi mesmo que nos conhecemos?
quem de nós falou primeiro?
De onde vinham teus sonhos?
Que nova fase nós estamos?

Onde foi mesmo que nos conhecemos?
Por que não escondes um segredo?
Será que estamos sempre errando?
Ou será que tudo é verdadeiro?

Onde foi mesmo que nos conhecemos?
Já brigamos, não foi mesmo?
Não deitamos, não foi mesmo?
Por que não lembro do começo?

Onde foi mesmo que nos conhecemos?



Hoje cruzei com os teus olhos.
A fantasia estava acesa
e eu tive de esconder o que me consome.

Fiquei em silêncio,
embora minha voz saltasse da garganta,
ao timbre manso e pausado.
Não digo o teu nome!

Duas ou três perguntas fugiram dos teus olhos
e esbarraram em meu corpo
que inflama, chama, chama...
Escondo o teu nome!

Representei um amigo distante,
uma volta constante,
e coloquei em prática o texto definido:
todas as palavras foram trocadas.
Quase digo o teu nome!

Olhei dentro dos teus olhos:
fingiram sem medo;
a voz tremia.
Você me via e mal guardava segredo.
Quase você disse o meu nome!

Observei discretamente a tua pele:
havia sol acumulado eu teu corpo.
Era como se o jambo fosse a pele do teu nome
e eu apenas um homem distante do branco
do teu corpo.

Fugi dos teus olhos
e continuo fugindo do teu nome!