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A poesia é liberta, não tem senhores; é sozinha, ao mesmo tempo multidão. Seu canal é o poeta, por onde passa, arrastando veias, fígado, mãos, olhos, coração.

ESPARSO - POESIA - 1997

Ora, vejam vocês,
os anjos também vestem-se de armaduras
frágeis em seus semblantes.
Surgem radiantes, abrem os sonhos gigantes
e te levam
te levam para longe.

Os anjos trazem gestos delicados,
dão à noite um horizonte iluminado
e te entregam as montanhas,
as árvores,
os rios, os mares.

Os anjos, veja você,
iluminam os vitrais opacos da sua janela,
pincelam de branco as suas paredes
e desdobram-se em zelo,
em palavras colhidas com flores no meio.



Às vezes me encontro completamente despido de mim
e me tenho como os anjos,
a me multiplicar,
a me dividir,
a me encontrar por entre frases passageiras,
que chegam
e que vão ligeiras,
como quem tem medo de ficar.



Ter a poesia
é possuir um vulcão adormecido.
A qualquer hora
pode entrar em erupção.

Ser poeta é sugar do mundo
a essência
das madrugadas frias,
silenciosas;
ser canal de rio, ao sol,
ao deserto;
caminhar entre pedras,
estradas longas;
seguir a lua,
observar a rua: crua.



Tirar poesia da própria poesia
é sugar impiedosamente.
A poesia é entranha ardente
criada à luz da mente.
É a confissão no silêncio
o ofertório, os joelhos de sempre.



No papel
palavras são só palavras
que falam
a vida inteira
que lembram
a vida inteira.
Já na vida
palavras não são palavras
são preces
que unem letras.



Uma ducha de nota suave,
onde eu possa limpar os poros da alma,
deixando o meu corpo leve,
a mão bem mais leve
e a rua mais clara.

Um divã para um músculo cansado,
onde seja o pulsar um cantar mais pausado,
onde a hora que finda
seja uma vinda, um fato
e eu possa voltar à terra, ao rio,
ao mato.



Recolhe esse prece
no jardim das rosas negras,
leve-a ao Jordão,
ao monte das Oliveiras
e transforme-a num rosário de oração.



Sargaços se tornam mantos,
areia, água e sal.
Marinhos cavalos brancos
nos lábios de um corpo igual.



Nós, homens, caminhamos
por entre ladeiras
e avenidas desconhecidas.
Momentos abaixo, momentos acima,
em estradas retas ou estradas perdidas.
Estamos em ruas desertas,
estamos em ruas floridas.
Somos como a água escorrendo pela vida!



Passamos pelas estradas
pelas matas
e pelas águas que vão e que voltam
nas tantas gotas
nas tantas chuvas
nas tantas sementes que um dia brotam.

Há folhas nos verdes que rolam
vermelhos em pétalas de rosas.

Dia após dia
secretas as portas.


Quando ele aponta na mira dos meus olhos
invade a minha casa,
revira o meu tapete
e espalha a poeira nos quatro cantos do quarto.
Como um tufão enlouquecido
arrasta todo o meu pensamento
e o tritura como uma máquina mortífera,
deixando os meus olhos cansados,
os meus braços quebrados
e os pés na contra-mão.

Quando ele aponta na mira dos meus olhos
acerta as gaivotas do meu coração.



Onde o amor habita,
as fotografias se registram no tempo,
no altar de algum templo.
São memórias que não estão na parede,
que não estão no sofá,
que não estão nos corredores.
Onde o amor habita
as coisas mais bonitas
são aquelas não ditas,
aquelas escondidas,
aquelas em que os olhos em segredo se
misturam,
se molham e se evaporam de tanto encontro,
de tanto tempo no tempo,
de uma memória tão leve,
distante,
bem distante do que sabemos.
É que o amor parece ser antes do antes,
como um Drácula errante
na busca da amante,
do diamante partido no peito.
O amor tem esse efeito
de transformar tudo em grande,
de ter o perto bem longe,
e ir ao longe, ao longe, ao longe...
como a lanterna que procura lá no fundo da
grama
um botãozinho
de ouro.



Brando espaço
de área lenta e pura
onde a calma
deita na alma
e cura.



Dá-me teu braço
e deixa que eu te leve
em passos largos
e faça de meus mares
constelações inteiras,
onde todas as estrelas
sejam partes de tua casa.

Dá-me tua mão
e deixa que eu te embale
no suave calor do meu braço,
na essência de tua pele,
no suave tocar de nossos lábios.

Dá-me tuas horas
e deixa que eu te faça eterna
terna
como o encontro dos nossos olhos,
na cumplicidade de nossos guias,
na paz de nossos dias,
na hora do nosso encontro.

Dá-me teus sonhos
e deixa que eu não fuja deles
que eu te abrace no meio do medo,
na hora do credo,
na meia-luz em que somos inteiros.

Dá-me teu mundo
e deixa que eu me inclua em teu nome,
registrando no portal da esperança
um só sobrenome
lido com os olhos de nossa alma.



Olha. Olha bem nos meus olhos.
Eu sei que a cidade passa,
os automóveis passam,
os aviões sobrevoam.
Mas, olha nos meus olhos.
Olha bem dentro de mim.



Anjo negro de pele clara
onde a sombra na luz se lança
põe brasa sobre a brasa
e faz com o fim da chama
a casa.

Anjo de lua devassa
de outras, tantas outras, mansas
diz quantas ruas te passam
quantas outras te chamam.

Anjo eterno, estátua da praça,
diz quantas flores existem na grama.



O poema dorme
e sobre ele o poeta colhe
límpidas e orvalhadas pétalas
que fazem o tecer, as telas
mais perfeitas.



É que o poema no poeta
é raio, é natureza
algo envolvido em grandeza
que se despe na floresta
ou na geleira
no manguezal
no rio em correnteza
ou na imaginação dos mares.
O poema é tão belo que dorme.



O poeta é apenas o que olha,
colhe a pétala nobre
e tatua em seu corpo.



O medo que eu tenho deste poema
é que ao lê-lo novamente
ele já tenha acabado
e eu fique calado
fugindo de mim.



Por onde clamas e por onde passas
há uma essência que te declara
que te exala por todo campo.

É como um rio tendo o mar que se vaza,
que se escapa em sublime grandeza.



Para diante da parede
e lá se vê.
Resiste em silêncio, ausente
e adentra pelo tapete
confessando ao mundo dormente
sua peleja, mãos sobre a mente
como se houvesse um contrato,
um papel desbotado.



É no meu rosto que derramam teus olhos
que aos braços se fecham e molham
os arredores por onde circula.

Algo tão claro se apaga na lua...




Olhei dentro dos teus olhos:
fingiram sem medo;
a voz tremia.
Você me via e mal guardava segredo.
Quase você disse o meu nome!

Observei discretamente a tua pele:
havia sol acumulado em teu corpo.
Era como se o jambo fosse a pele do teu nome
e eu apenas um homem distante do branco
do teu corpo.



Olha para o poema como se de lá fosse surgir
uma fera, uma bala perdida e certeira.
Não vê e nem sente que as flores já foram sementes
e que o amor transita no peito assim como o oxigênio.



No mundo onde os lobos se devoram
as armadilhas são velhas senhoras
farejando no coração do abismo.



No canto direito
do teu olho esquerdo
andorinhas passam
no avesso.



Você não é.
Sim, você não é.
Eu também não sou.
Sim, eu também não sou.

Mas, nós... ah! nós somos tantos...



A porta é cega
as pálpebras são mortas
mas o poema é nobre
ele cobre-se de chuva.



O amor é bicho estranho
perde a vergonha
a troco de nada.

O amor é uma coisa engraçada...



Na janela distante
alguém canta sobre o telhado.
Mãos que se lançam em fios de luz
sobre o seu corpo
ergue um refúgio de paz.



Vasculho os quatro cantos da sala,
os travesseiros da alma, imenso vazio.
Procuro e o coração logo cala,
já é madrugada, deságua meu rio.




Duas criaturas dispensas na procura
são duas ruas paralelas, nuas,
que se trafegam em curvas, estradas.

Duas criaturas desertas no asfalto
são como concretos no meio do mato,
perdidos em poeiras, rastros.




Estreita fresta
que se alastra
por onde silenciosa
a andorinha passa
e vai com suas asas
solitárias
criar verão.

Adiante, esparsa
outra andorinha
que também passa
vai com suas asas
claras
voar sobre as águas,
repor sã e salva
o seu coração.




Permaneço ali, em prece,
com a harmonia que desce,
vendo um povo branco a passar.
Mergulho na cascata mais leve,
bebo da lua que me aquece
e ouço o silêncio do mar.




Esse é o universo que componho:
misto de realidade e de sonho,
que veste o artifício mais leve
e que se despe como os fogos
que rasgam o início do ano.
Esse é o universo que componho:
um mundo mais branco
com mãos noutras mãos se dando
e o Eterno sorrindo
e cantando,
iluminando a oração.




Os minutos se arrastam.
Um dia passa lento.
Mas um mês, um ano,
passam mais rápidos
do que imaginamos.

Quando menos esperamos
tudo está distante.



Corro, anoto o teu nome
e aguardo as palavras que fogem.

Sempre é assim,
as letras não se abraçam
quando quero falar de ti.




Eu estava com saudades de mim.
Procurava-me no armário,
escorria-me pelo chuveiro,
gritava pelos lugares
e escrevia-me o dia inteiro.



Não há sonho maior.
Não há sonho menor.

Existem pedras e flores,
sombras e cores.



Nessas andanças
de descobertas e conquistas
são retas as pistas
e desertas as lembranças.



Os poemas também se quebram.