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A poesia é liberta, não tem senhores; é sozinha, ao mesmo tempo multidão. Seu canal é o poeta, por onde passa, arrastando veias, fígado, mãos, olhos, coração.

AMÁLGAMA - POESIA - 1992


O ÓBVIO
A poesia é liberta, não tem senhores; é sozinha, ao mesmo tempo multidão. Seu canal é o poeta, por onde passa, arrastando veias, fígado, mãos, olhos, coração. Cabe ao homem captar o sabor das palavras, mesmo que, aparentemente, sem sentido. Não há uma vírgula que não tenha motivo!

O poeta não é aquele alienado que dobra uma esquina e se debruça na mesa de um bar. Ele se entrega por inteiro às suas palavras bem antes delas nascerem.

Ser poeta reside nos momentos, não exatamente em fatos, em pessoas. Não há poesia o dia inteiro!

Há poetas que são loucos, outros que são sábios, mas não há poeta vazio, que não carregue dentro de si milhões de imagens, milhões de palavras.

Não é a rima que identifica a poesia, assim como não é a dor, obrigatoriamente, que define o poeta. Há variações na poesia, há liberdade nos poetas.

Falar de poesia é tentar definir o invisível; dar forma à poesia é tentar tocar o infinito.

Ser poeta é sugar do mundo a essência das madrugadas frias, silenciosas; ser canal de rio, ao sol, ao deserto; caminhar entre pedras, estradas longas; seguir a lua, observar a rua: crua. O poeta não é diferente de quem transita a Rio Branco, de quem vai a Ponta Negra ou Ponta do Mel, de quem termina a noite jogado na primeira calçada macia. Ele é igual ao menino que engraxa sapatos, aos que devoram um leve rosário, ao artista que redefine a arte, ao médium que descobre o óbvio.

Ter a poesia é possuir um vulcão adormecido, a qualquer hora pode entrar em erupção.

Você Ainda Não Percebeu

Não!
Aquilo deitado no frio é gente!
Tem alma, tem corpo... sente!
Nasceu, não morreu... compreende?

Não!!
Aquilo calado, acuado, é gente!!
Tem alma, tem corpo... sente!!
Não, não morreu... compreende??

Não!!!
Você ainda não percebeu!!!
Aquilo deitado, calado, acuado, é gente!!!
Tem alma, tem corpo... sente!!!
Nasceu, não morreu... compreende???

Não roubem nossos cabelos!


Nós,
os inocentes,
só queremos andar pelas ruas
com nossas cabeças nuas
sem medo de outras mãos.

Nós,
os inocentes,
só queremos ver céu aberto,
correr, florir desertos,
ir aos campos da emoção.

Nós,
os inocentes,
não precisamos de pelotões,
não almejamos altas mansões,
queremos sim, compreensão.


Oscilando


Todo um desejo refletido ao espelho
traduz minha ânsia de amplidão.
Todo esse vácuo, desligado do tempo,
reduz-me a um só momento: calma e solidão.

Traduzindo o silêncio no meu mais alto tormento,
inclino-me do Norte ao Sul
e pouco conheço do Centro.

Como uma balança desgovernada,
também oscilo no meu eixo.
Já não vejo a âncora da rebeldia.
Já não é lágrima ter silêncio.

É um tormento, é um bravo tormento.
Mas, sendo sincero, não nego,
é um santo momento.

• Primeira poesia publicada


Fratura Exposta

A obra calejada do artista
expõe sua ira,
seus códigos,
sua sabedoria.
É uma obra esquartejada,
totalmente desmantelada,
agonizando no chão.
É uma obra composta
com sua fratura exposta
e uma interrogação.
Essa é uma obra completa,
extremamente concreta
com sua fragmentação.
É um reflexo do povo,
do trabalhador e seu ovo
fotografando a nação.


É muito importante a fé!


Mancos, cegos e loucos


Aqui, na cela do meu coração
adormeço minhas dores,
anestesio minhas profundas dores.

Aqui, na cela do meu coração
arde o peito, sem água no poço
e a garganta inflamada explode no chão.

Aqui, na cela do meu coração
arrastam-se mancos, cegos, loucos
arrebatam-se as almas, salvam-se poucos
e já não vejo o abismo, perdi a visão.

Aqui, na cela do meu coração
todos os rios são turvos,
todos os lares são curvos
e eu me afogo em lágrimas de sangue na mão.

Aqui, na cela do meu coração,
cadeados, cimentos, urubus de porão
são todos carrancas da imaginação.


Sob as marquises


Recolhe essa prece
no jardim das rosas negras,
leve-a ao Jordão,
ao Monte das Oliveiras
e transforme-a num rosário de oração.


Devoradores de pedras


Desço à terra
e atravesso lamas que se movem
guiadas por um par de olhos
esfomeados,
esburacando a pelada serra.
Surrados,
os corpos já não são mais vestes
e eles, devoradores sem peles,
deleitam-se em chocolates de pedras,
gastam suas mãos, suas pernas
e quase não voltam à nação.


Areias negras


Deito lentamente...
O corpo cansado adormece,
a mente em movimento distancia.

Passeio entre pessoas que desconheço,
encontro lugares sem fim, nem começo
e ultrapasso a letargia da estagnação.

Adormeço...
Aparentemente me esqueço!

Corro entre abismos, arvoredos,
pedras, areias negras dos segredos
e me apanho correndo em contra-mão.

O amor,
por ser amor,
não morre.



Cascatas de pedras


Dois olhos,
duas nascentes de uma cascata,
que jorram na estrada,
na longa estrada,
e que molham a árvore já seca,
não molhando mais nada.

Dois olhos,
dois dedos que apontam a estrada,
duas faces de uma madrugada,
que olham distante,
não vendo mais nada.


Agora e sempre


Ave Maria pro índio
Ave Maria pra terra
e pros homens que vivem nela.

Ave Maria pra rua
Ave Maria pra velha
Ave Maria dos negros
e de todos na luz de uma vela.

Ave Maria
para não ficarmos cegos
para não ficarmos mudos
e para afastarmos a cela.


É de lua


Tenho a lua como promessa,
sua boca que não confessa
e os sonhos armazenados em mim.

Tenho a noite de muita espera,
o amanhã sempre, quem dera!
e todas as flores do jardim.

Tenho todas as horas do calendário,
o infinito, deserto dos mares
e pouco tenho, senão a mim.


Platônico


Teus dias eu não conheço.
Teu corpo, somente o começo.
No mais, nunca... talvez depois!

Teus olhos, eu sei, atrai o oposto.
Teus lábios não toco, imagino o gosto.
No mais, nunca... talvez depois!


O amor independe de sexo,
de cor,
de espaço de tempo.



Diário


Chego diariamente
no teu consultório,
sento ao teu lado
e repito a oração.

Analiso toda tua pele,
passeio sobre teus olhos
e aguardo, calmo, a tua mão.

Permaneço ali, anestesiado...

Enquanto você não me percebe
vou despindo teu corpo
e respiro toda tua pele.

Nu, invado os lírios do teu campo,
florestas, matagais: diamante!
sussurro teu nome ao te buscar.

Todos os dias eram assim...


Desmistificando


Enfim,
detectei o mistério do teu radar!

O teu,
exclusivamente,
é um mundo perfeito,
não tem distúrbio no peito,
nem conector no olhar.

O meu,
necessariamente,
é esse rio sem leito,
é esse vale estreito
onde não podes entrar.

Como vês,
não somos complemento,
não temos um só momento
onde possamos cruzar.


Nas rosas de Iemanjá


Permaneço ali, em prece,
com a harmonia que desce,
vendo um povo branco a passar.
Mergulho na cascata mais leve,
bebo da luz que me aquece
e ouço o silêncio do mar.


O que você diria a uma pessoa que foi escaldada, tirada a pele em carne viva e depois acordada com uma panela de água fria?
Mandaria fazer terapia?
Colheria seu sangue numa velha bacia?
Ou simplesmente ofereceria parte do seu coração?


Depois que fiquei sozinho,
minha caneta foi secando, secando...
Quando tentei falar de mim
a tinta já tinha me levado.

Em folhas


Página minha, arrancada
sem muito credo: jogada
entre o “bureau” do fazer nada,
roncando, roncando... e nada!

Página minha, queimada
no sol da meia noite: estrada
entre as pedras e as asas cortadas
rolando, rolando... e nada!

Página minha, molhada
no silêncio da noite parada
entre as sombras de estátuas talhadas
pingando, pingando... e nada!

Página minha, rasgada
no piso da alma deitada
entre o capim e o fim de quem cala
buscando, buscando... e nada!


Saudade que fica


Agora que alimentas a terra,
resta-nos a eternidade do encontro
em qualquer futuro,
em outro canto,
nas maravilhas do Senhor.

Agora que o barranco te levou,
resta-me a lembrança do nosso dia,
a conversa risonha,
a janela fria,
e o desencontro do nosso amor.

Agora que o telefone não toca,
que não mais te encontro em minha porta,
resta-me a imagem
na luz da eternidade,
teu riso, teu cheiro de flor.


Talhado em pedra


Quando olho a fresta
que dá além dos vitrais mais belos,
percebo entranhas vazadas,
voltadas a cavernas de pedras.

Quando enfrento o olho,
que suga a minha testa,
refaço a talha do que me resta
e levo aos lábios o coração.

Quando enfrento olhos,
machados e fechas,
vou ao submundo em distorção
e busco ferramentas de guerra.


Á terra, ao rio, ao mato...

Uma ducha de nota suave,
onde eu possa limpar os poros da alma,
deixando o meu corpo leve,
a mão bem mais leve
e a rua mais clara.

Um divã para um músculo cansado,
onde seja o pulsar um cantar mais pausado,
onde a hora que finda
seja uma vinda, um fato
e eu possa voltar à terra, ao rio, ao mato.


Há uma meia palavra
em meio a tantas outras
que se capta...


Portal de luz


Dá-me teu braço
e deixa que eu te leve
em passos largos
e faça de meus mares
constelações inteiras,
onde todas as estrelas
sejam partes de tua casa.

Dá-me tua mão
e deixa que eu te embale
no suave calor do meu braço
na essência de tua pele
no suave tocar de nossos lábios.

Dá-me tuas horas
e deixa que eu te faça eterna
terna
como o encontro de nossos olhos
na cumplicidade de nossos guias
na paz de nossos dias
na hora do nosso encontro.

Dá-me teus sonhos
e deixa que eu não fuja deles
que eu te abrace no meio do medo
na hora do credo
na meia luz em que somos inteiros.

Dá-me teu mundo
e deixa que eu me inclua em teu nome
registrando no portal da esperança
um só sobrenome
lido com os olhos de nossa alma...


Cascata de prata


Iara, Mãe D’água
velai pelos nossos
que permanecem obscuros
nas correntezas profundas
sem limites para voltar à tona
curtir a lona
que é esse claro céu.

Salve, Rainha Sereia!
Ecoa teu canto
para que o véu do teu lindo manto
possa trazer bênção
num ritual de cascatas,
onde os pássaros fazem a festa.

Canta, Senhora Sereia!
E espalha estrelas luminosas
por esses bueiros escuros
para que brotem os lírios mais puros
e o homem possa iniciar
continuar
e permanecer em sintonia.


Um adágio para Mozart


Um Deus violino
atravessa a minha rua
invade a minha casa
e faz morada no meu coração.

Um Deus de menino
ilumina o meu caminho
e distribui rosas claras
notas raras
na santidade de sua mão.


Às vezes
quando venho na rua
me pego em silêncio
fugindo de mim.


Cinco da tarde


O calçadão da João Pessoa
permanece em harmonia
na sonolência do dia
na oração do sol
pedindo licença para dormir.

O calçadão dos meus dias
aprova a liberdade da vida
recebendo as horas da manhã
os pássaros da tarde
e a noite rígida, fria.

O calçadão da João Pessoa
é essa pessoa
de mãos dadas com a humanidade!


Final de tarde


Meus trilhos...
Meus vagões enferrujados
levam-me a estações distantes
com percursos diferenciados.
Gramas correm ao meu lado
e um lindo pássaro perfura o sol brilhante.
Paro entre vírgulas do meu passado
entre armadilhas do me telhado
e limpo os olhos quando canto.
Brinco com as nuvens
salto em um lindo lago
e divido com os sapos o encanto.
Quase adormeço...
Deito sobre suaves notas
recordo as horas já mortas
e vou invadindo o luar.
As estrelas sutilmente me avançam
enfileiradas me chamam pra cantar.
Canto...
Há tantas Sertanejas que choram
bailarinas que passam
sem conseguir me ninar.
E assim meus vagões vão me levando...
Meu olhar distanciando...


Interior


Borboletas amarelas,
calangos no mata-pasto.
Jumento, cercas, cadelas
e o verde ao vento, tão vasto.

Sabugos de milho jogados,
carretas tão feias, banguelas;
era linda a minha vida no mato
quando criava as minhas janelas.


Invasão na noite


Quando ele aponta na mira dos meus olhos
invade a minha casa
revira o meu tapete
e espalha a poeira nos quatro cantos do quarto.
Como um tufão enlouquecido
arrasta todo o meu pensamento
e o tritura como uma máquina mortífera
deixando os meus olhos cansados
os meus braços quebrados
e o pés na contra-mão.

Quando ele aponta na mira dos meus olhos
acerta as gaivotas do meu coração.


Quando havia teu corpo na minha janela
a moldura era apenas teoria
tua pele ardia
e eu te bebia o ano inteiro.


Tenho necessidade do meu silêncio...


Começar do zero a cada manhã.
Buscar no passado a memória que traga resposta, que deixe o presente mais claro, mais fácil de trafegar.
Errar se necessário for. Nunca parar de tentar.
Depositar na vida a confiança e deixar que a fé residente na alma possa apontar estradas concretas onde eu possa caminhar.
Caminhar!
Encontrar pedras e enormes portas, saltar abismos, criar largas botas e caminhar, caminhar, até encontrar uma passagem luminosa onde eu possa armar uma rede, depois cantar, cantar, até sonhar.
Estar com olhos abertos e conviver com a meiguice do olhar que passa, da mão que acena, dos lábios que falam palavras que não estão no vocabulário.
Ficar assim, protegido por um exército de coqueiros até que a cidade adormeça e eu possa voltar às ruas.